terça-feira, 27 de março de 2012

::: Abismo ::: Por Tati Bernardi

O garoto sai do banheiro feminino achando graça. Tava muito apertado e não rolou esperar pra usar o outro. Gosto dele de cara. É o tipo de garoto gatinho, tímido e ansioso que você sabe exatamente como se comporta pelado: cachorrinho, demorado e desinibido. Gosto mas faço de conta que não. Sorrio superior afinal sou pelo menos uns sete anos mais velha e uns quinze mais esperta. Ele entende na hora tudo e compra a submissão. Faço meu xixi com pressa porque gostei mesmo do garoto.

Ele senta perto de mim na mesa. Está na mesma festa que eu, com a diferença que eu já fui chefa do chefe dele. Só aí já é um bom motivo pra ele me olhar baixo mesmo. E ir com muita calma. Ele mexe no cabelo, ajeita a calça pra sentar, alinha a carteira com o celular em cima da mesa. Que garotinho bonito. Ele está nervoso e fica ainda mais bonito. Gosto muito dele.

Ele então começa a rir alto. Contar de garotas da idade dele. Se exibir para garotas da idade dele. Ele é o sucessinho da festa. Faz tudo pra chamar a minha atenção. Eu sei. A cada dois segundos ele olha pra saber se eu estou olhando. E ri. Eu só espio por cima dos meus óculos. Sem nem gostar e nem não gostar.

Quando dou por mim, que absurdo, estou pegando um cigarro da minha amiga. Acendo, não trago, mas faço pose. Olho pro horizonte. Sou sofrida, você vê, garotinho? Sou tão sofrida e experiente e estranha e terrivelmente charmosa. Percebe? Você aí, com essa alegria terrível de viver e jorrando beleza e graça pra cima de mim. E eu aqui, arqueada pelo tanto que carrego de mundo e suas rasteiras. Você acha que é quem pra me abalar assim? Eu li muitos mais livros que você. Conheço mais países e pessoas e gemidos e vontades de morrer. E você com tanta graça pra cima de mim. Percebe que não vai ser fácil? Vou dificultar bastante pra você. Até porque é só o que eu posso contra essa coisa fácil e linda que é a sua vontade. Contra você eu só tenho a minha impossibilidade. Como se todos não a tivessem. Contra seus olhos que sorriem e isso me mata tanto, só tenho a parede nojenta que criei pra você jamais descobrir que sempre compro duas entradas para o concerto. Na espera do que não quero.

Ele senta ao meu lado. Cara de pau. Me provoca. Diz coisas inteligentes e delicadas. Eu acendo outro cigarro. Seguro a tosse e a ânsia. Hoje eu fumo e isso é como um braço meu. Não venha querer me dizer como deve ser um braço meu ou eu soco você. Pergunto se ele quer conhecer minha casa. Ele fica assustado e ri. Ele pede mais uma água com gás, sem gelo e com limão. Eu não sei o que acontece comigo, mas peço uma taça de vinho e bebo como macho. Ele me pergunta o que eu faço da vida. Eu respondo: nada. Eu não faço nada. Eu leio, o dia todo. Tô louca pra contar que sou escritora e roteirista e todo o blábláblá mas me dá a louca e eu respondo isso. Eu leio o dia todo. Ele estranha, arregala os olhos. E quem paga suas contas? Eu respondo que não pago contas. Odeio todas elas. Odeio qualquer cobrança. Aos poucos, sinto um prazer descomunal. Acendo mais um cigarro. Resmungo algo sobre Deus ser como os cinzeiros. Nunca estão onde a gente precisa. Se é que existem. Dessa vez tusso, não estou dando conta do personagem, mas sigo em frente reclamando: preciso parar, sabe? O médico falou que já passou da hora. Aliás, odeio qualquer um querendo cuidar de mim. Ou saber da minha vida.

O garoto topa vir para a minha casa. Ele chega querendo me contar mil histórias mas eu pouco suporto a metralhadora. Pessoas são interessantes só na minha imaginação. A partir do momento que elas passam a ter vida própria, sinto vontade de jogá-las pela minha janela. Ele perde a graça a cada minuto e eu o odeio por isso. Eu estava feliz por gostar de algo e sair de mim. Mas não mantenho nada aqui dentro. E já sinto o tédio novamente. Largo o mala falando sozinho e vou para a minha varandinha. Não sei e nem quero saber dessas coisas que ele quer me mostrar que sabe. O quê? Sei lá que livro de merda é esse. Coloco Keith Jarrett no ultimo volume e vou ficar terrivelmente sombria olhando para as casas em torno de mim. Fumando de um patamar jamais escalado por qualquer ser humano. Pior ainda os bem intencionados. Ele está louco por mim. Eu sou tão misteriosa e inatingível e dura e alta. Ele me abraça por trás. Eu gosto dele. Eu gosto muito dele. Mas não posso. Não quero. Ele é chato, mala. Sai daqui, garoto. Daqui a pouco ele vai precisar de mim ou eu vou precisar dele. E seremos mais um casal. E se eu quiser ficar desfacelada num canto e ele sofrer com isso? E me ameaçar, como todos, dizendo que vai deixar de me querer só porque sou assim, tão incapaz de querer? Ele vai descobrir. Eu estou morta. Ele vai descobrir. Eu morri há muitos anos quando era para eu ter morrido. Por isso não acendo a luz, minhas plantas são um pouco secas e murchas, minha casa é rachada, bagunçada, suja, mal assombrada. Não quero planejar, sair da cidade, ter um filho, conhecer seu melhor amigo, ver suas fotos, largar esse cigarro maldito, cuidar dos meus dentes, colocar perfume, fazer um exame de saúde. Não quero. Porque eu estou morta. Eu nem saio mais em fotos. Sou um fantasma. Amo com a intensidade de um último sopro, mas sempre morro em seguida. Ele vai descobrir. Ele vai me amar muito porque nessa tentativa de amar sou tão única e especial e absurda e perfeita e tudo. Mas depois. Nada. Vou deixar que ele me reanime com o choque e então será tão bom. Mas depois. Quieto e sereno como os elefantes que sabem o dia que vão morrer. Vou caminhar enorme e derrotado e cinza e sem drama para a minha vala.

Ele me abraça e é tão bom. Ele é só mais um tentando me salvar. São sempre os bonzinhos e puros que caem no meu papo furado de longa espera por algo que valha. Faço eles se sentirem um presente do mundo pra mim. Finalmente o escolhido. Os desembrulho de tal modo e eles têm certeza. É a primeira vez que se abrem. Agradeço a surpresa e torno a vida deles tão superior a tudo que já foi vivido que fica praticamente impossível voltar pro mundo.

Ele pergunta o que eu tenho. E então começa o festival de sempre. Tenta me alegrar e eu ignoro. Tenta me emocionar e eu ignoro. Se fecha e eu ignoro. Me enche de beijos e eu reclamo. Estou fedida. Me deixa, me deixa. Ele desiste e desaba no meu sofá. Ele não sabe o que fazer. É o desfecho grandioso da crueldade do meu personagem. O momento em que deixo claro que a pessoa quase conseguiu. Algo impossível e você chegou tão perto! Nunca ninguém chegou tão perto! Por que você foi estragar tudo no final? Eu estava a fim. Abri minha casa para você. Você tinha tudo pra me dobrar. Mas você não conseguiu. Balanço a medalha na frente dele pra depois dizer que nunca ninguém chegou tão perto de usá-la. E então, lanço o caralho da medalha pra puta queu pariu. Ouvimos o som dela se espatifando longe e para sempre. O garoto vai embora se achando um lixo. Mas conforme anda, volta a sentir seus músculos e cores e sentidos. Que sensação é essa que mata a gente só porque escapamos da morte? De cada amor, tu herdarás só o cinismo. Ele vai embora enquanto espio. Eu vou embora junto. Quem é que fica?

3 comentários:

  1. Anna, muito bom o texto. Nunca vi algo assim que mostra sutilmente a verdadeira face de uma mulher fatal...
    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. oi lindo texto..e vc se espresa muito bem em suas palavras
    parabens...bjs que vc tenha uma otima tarde
    http://segredosdeumamulherapaixonada.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  3. Uma feliz e deliciosa páscoa para ti e toda tua familia, beijinhos com sabor de chocolate em

    ResponderExcluir